Não é o que possuímos, mas o que gozamos, que constitui a nossa abundância
Os provérbios transmitem mensagens úteis que se pronunciam sobre o mundo interior e exterior e da sua relação na nossa existência. A gestão do nosso percurso vivencial é uma escolha individual que determina o modo de estar e ser de uma forma profunda, que, por vezes, escapa a um entendimento veloz a que somos compelidos. Este provérbio árabe alude, sem dúvida, a essa gestão do percurso vivencial.
Vivemos num contexto imediatista e enformado por um paradigma orientado para o consumo, muitas vezes influenciado por uma tentativa de compensação imaginária em que se pensa que a falta de algo pode ser equilibrada pela existência de algo de outra ordem.
São muitas as expectativas que recaem sobre nós, e os modelos de sucesso têm sido encaminhados para o ter em detrimento do ser. Neste ambíguo paradigma, mede-se, por vezes, o sucesso pela quantidade de bens que se possui, pelo seu valor simbólico ou real. Comparam-se e seleccionam-se pessoas pelos seus sinais exteriores de “riqueza”, sem que se veja para além, ou seja, o essencial, que “é invisível aos olhos”.
A História da Humanidade está plena de casos reais em que ter muito – seja de que natureza for – não é linearmente traduzido em ser muito. A noção do ter é, por vezes, descontinuada da fruição. E, não raras vezes, confrontamo-nos com as questões existenciais de ter muito, mas com pouca felicidade ou bem-estar.
Este artigo debruça-se, na sua essência, sobre a área do desenvolvimento pessoal e a forma como interpretamos, categorizamos e materializamos, na acção, tudo o que nos acontece.
Para ser mais enfocada, cito o exemplo do TEMPO, um bem valiosíssimo que não dominamos na sua totalidade, pois desconhecemos quanto tempo ainda nos resta. A competência temporal, enquanto consciência de que tudo o que fazemos – ou não – hoje se repercute no futuro, pode ser considerada uma ardilosa noção de abundância. Quando verbalizamos “amanhã usufruirei de tudo o que alcancei hoje”, entramos claramente num domínio do qual não somos plenos proprietários. Já escrevi, anteriormente, que amanhã pode ser tarde de mais.
A abundância, da qual somos plenos proprietários, é o hoje, aqui e agora. O ontem, o passado, é importante e tem a sua centralidade na nossa vida, em formato de memórias. O aqui e o agora assumem-se como vivências, que serão em breve memórias.
O que somos e como o assumimos na sua fruição é o que enforma a nossa existência. As nossas circunstâncias e a forma como as interpretarmos é que enforma a nossa felicidade, equilíbrio e bem-estar. A felicidade e o equilíbrio não são conceitos universais, por muito que o contexto determine criar modelos que pretendem influenciar e orientar as acções. A montante, como trabalho interior, é importante definir as nossas expectativas e necessidades, sem que estejam a priori determinadas pelos modelos dominantes.
O que somos é, sem qualquer dúvida, a nossa abundância segura, independente das flutuações e desafios do contexto. A decisão da gestão deste património é um direito individual inalienável e pertence-nos, sem que haja lugar a penhoras ou a tentativas perversas de usurpação.
Somos o que somos, temos o que temos. Os nossos pares são o que são e têm o que têm. É indispensável evitarmos as comparações se queremos ser iguais em qualidade ou quantidade. De que vale a pena possuir muito se estivermos privados de ser e aproveitar em conformidade?
É inegável que os bens materiais são essenciais para fazer face às necessidades de sobrevivência próprias e dos que estão à nossa responsabilidade. Porém, os bens materiais são perecíveis e sujeitos a uma satisfação imediatista. Por muito que nos tentem toldar o raciocínio, relembremos que onde estiver o nosso foco estará, também, a nossa energia e caixa-forte da transformação individual.
Usufruir em pleno do que temos força-nos, por vezes, a optar sobre o que é essencial e a fazer escolhas. Observar uma criança que tem muitos brinquedos à sua frente e perceber como funciona o seu processo de selecção e de disponibilidade para cada um deles produz um manancial de análise interessante. Não raras vezes, pela excessiva oferta, o seu foco (e atenção) é, muitas vezes, disperso, volátil e com satisfação residual. Ter uma oferta reduzida ajuda-a, por vezes, a orientar o seu foco, concentração e usufruto. No fundo, podemos ter, neste exemplo, um espelho do que sucede entre ter e fruir.
Para resumir este artigo, cito Milan Kundera: “O valor de um ser humano reside na capacidade de ir além dele próprio, de sair de dentro de si próprio, de existir dentro de si próprio e para as outras pessoas.”
✍ Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico. ✓ Revisão de texto realizada por José Ribeiro