O que podemos reflectir com "The Giver"?
O filme Dador de memórias (do original The Giver), baseado no livro com o mesmo nome de Lois Lowry, é mais do que uma obra cinematográfica de ficção científica. É uma imersão no mundo das emoções e na forma como estas influenciam a dinâmica da comunidade e a gestão individual do comportamento.
Numa breve sinopse, é-nos apresentada uma comunidade aparentemente pacífica e perfeita, na qual tudo o que enforma a vida com cariz menos positivo foi eliminado. As memórias da Humanidade – guerra, doença, tristeza ou sofrimento – são inexistentes. Desapareceram as cores, a música, os livros. O mundo é apresentado a preto e branco, sendo essas as cores que determinam a vida em comunidade. As comunidades são, assim, “sítios serenos e belos onde a desordem se tornou harmonia”.
As opções e as escolhas individuais são formatadas externamente, sendo os papéis a desempenhar na sociedade pré-determinados e comunicados numa “cerimónia anual de progressão” em que, em função do “perfil”, os elementos da comunidade são chamados a incorporar esse papel, interpretando as responsabilidades e expectativas correspondentes.
As regras, apresentadas como as “fundações da igualdade”, são aprendidas logo em criança:
Use linguagem precisa
Vista a roupa adequada
Tome a medicação matinal
Obedeça ao recolher obrigatório
Nunca minta
Tudo parece imerso numa perfeição plena e idealista. Não existem mentiras. Sempre que alguma acção menos positiva é feita, limitada a um acervo inócuo, imediatamente são pedidas desculpas, havendo um feedback automático com uma frase formatada de “aceitamos as suas desculpas”.
A comunicação, em formato de palavras e expressão, é hermética, e tudo o que pode residualmente apontar para a emoção é automaticamente cerceado com o reminder “Linguagem precisa, por favor!”.
Não existe ética e/ou moral, e a possibilidade espontânea individual de exercer o juízo entre o certo e o errado é formatada a uma realidade única inquestionável. Um exemplo é a acção de enviar “para o outro lado” um bebé que não cumpre o percentil da idade. Quem executa essa ordem, aplicando a eutanásia, cumpre-a sem qualquer emoção e/ou associação do certo ou errado, considerando que está no cumprimento de um comportamento inofensivo. O “outro lado”, também, é o destino dos séniores quando deixam de ser úteis à comunidade ou se um elemento se desajusta da comunidade.
Existe, na comunidade, uma única pessoa que encerra em si as memórias da Humanidade, sejam elas boas e/ou más, e que tem a função de as transmitir a quem seja o escolhido para ser o novo receptor de memórias.
A ilusão da perfeição começa a ser desarvorada quando é designado um jovem como o novo receptor de memórias, que se apresenta nos primeiros segundos do filme: “O meu nome é Jonas, não tenho apelido; nenhum de nós tinha (...) vivíamos num mundo onde as diferenças não eram permitidas; não havia popularidade nem fama, nem vencedores, nem perdedores; os nossos anciãos tinham eliminado tudo isso para não haver conflitos entre nós”.
Jonas é a personagem que assumirá o elemento diferenciador nesta quimérica ordem social, questionando a legitimidade de ocultar aos seus pares a felicidade e o contentamento apenas porque esse é o meio para ocultar a tristeza, o caos, a violência. Jonas foi escolhido em função de quatro atributos, que são comunicados pela anciã na cerimónia anual de progressão em que completa 18 anos: «inteligência, integridade, coragem e outro que posso nomear, mas que não posso descrever: “a capacidade de ver mais além”».
Em suma, o que podemos reflectir com este filme?
Apagar a História da Humanidade é negar a própria Humanidade
O que nos torna humanos é a dicotomia das experiências e das vivências
A perfeição e a harmonia permanente são uma falácia
As escolhas individuais são um direito
A negação ou castração das emoções esvazia a nossa essência
A capacidade de análise, decisão e acção ancora-se nas emoções
A ética necessita de integrar racionalidade e emoção
A memória necessita das emoções e vice-versa
A determinação de regras normalizadoras e estigmatizantes consome o sentido da vida
As escolhas individuais e colectivas são aprendizagens, independentemente de serem boas ou más
As memórias da Humanidade devem ser recordadas para que se evitem os mesmos erros do passado
Porque as imagens valem mais do que simples palavras, partilho aqui o trailer oficial.
Termino citando Lois Lowry, que escreveu The Giver: “It's just that... without the memories it's all meaningless”.
✍ Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico. ✓ Revisão de texto realizada por José Ribeiro