O que podemos reflectir com “Ensaio sobre a cegueira”
O livro de José Saramago Ensaio sobre a cegueira é uma imersão no mundo do autoconhecimento, da relação interpessoal, da comunicação e da gestão de emoções. A sua leitura e interpretação necessita de uma abertura de espírito, de se estar com os olhos bem abertos, num sentido mais lato e diferente dos nossos hábitos diários. As mensagens explícitas e, também, subliminares são tantas e tão densas que uma leitura única é insuficiente para absorver o que esta obra partilha.
A leitura de José Saramago é, por si mesma, um desafio. Afasta-se da escrita óbvia para se dedicar a uma incursão ao mundo da humanidade, daquilo que fomos, somos e que almejamos ser. Aborda as circunstâncias, as idiossincrasias e os limites do Ser Humano. Aborda a relação, a comunicação, o fenómeno dos grupos e das equipas, da liderança e da gestão de conflitos. Em suma, creio, na minha modesta opinião, que aborda as nomeadas soft skills, de que hoje falamos amiúde como factores diferenciadores.
Nesta inquietante obra, sem referência a nomes, locais e datas, tudo começa, de forma inócua, num semáforo: “O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual.” E confronta-se a Humanidade com um homem que cega, sem que ninguém perceba como cegou. Consultado um especialista, o diagnóstico é estranhamente inconclusivo: “Não lhe encontro qualquer lesão, os seus olhos estão perfeitos.”
Curiosamente, “nessa noite o cego sonhou que estava cego”. Como se o inconsciente absorvesse o que o corpo sente e/ou vice-versa.
Esta cegueira de “uma cor branca uniforme, densa” apodera-se também do oftalmologista, de uma forma subtil e silenciosa, que no seu zelo de profissional avisará o “Ministério”. Medidas são tomadas, e a quarentena parece ser a mais adequada: que as pessoas sejam “recolhidas e isoladas, de modo a evitarem-se ulteriores contágios, os quais, a verificarem-se, se multiplicariam mais ou menos segundo o que matematicamente é costume denominar-se progressão por quociente”.
Para esta quarentena, é escolhido um manicómio, local que “apresenta melhores condições, por que, a par de estar murado em todo o seu perímetro, ainda tem a vantagem de se compor de duas alas, uma que destinaremos aos cegos propriamente ditos, outra para os suspeitos, além de um corpo central que servirá, por assim dizer, de terra-de-ninguém, por onde os que cegarem transitarão para irem juntar-se aos que já estavam cegos”. Será para este local que o especialista oftalmologista será levado, teimosamente acompanhado pela sua mulher, que se finge de cega.
Será neste espaço que se revelarão as atitudes e os comportamentos que são de atentar e analisar. Emerge a gestão das necessidades, tal como as conhecemos na pirâmide de Maslow, cruas e duras. A luta pelo abrigo, pela comida, pela satisfação das necessidades fisiológicas. Emergem os instintos, tal como os conhecemos num mundo que se afasta da racionalidade.
O que podemos reflectir:
A mente humana é, por vezes, refém do medo, gerando comportamentos desprovidos de racionalidade, como se o instinto fosse a única estratégia para sobreviver: “A ameaça não venceu o temor, só́ o empurrou para as últimas cavernas da mente, como um animal perseguido que vai ficar à espera duma ocasião para atacar [...]”
A forma mais ardilosa e perversa de gerir e conduzir pessoas é pela cultura do medo: “O medo cega [...] são palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos [...]”
A decisão de aceitar e replicar as opiniões ou dogmas é da inteira responsabilidade individual: “[...] a cegueira não se pega só́ por olhar um cego alguém que o não é, a cegueira é uma questão privada entre a pessoa e os olhos com que nasceu [...]”
Em situações de crise, aliada à falta de conhecimento e de sentido crítico, a clarividência é directamente afectada: “[...] a ansiedade de uns quantos cegos menos esclarecidos veio a complicar o que em normais circunstâncias teria sido cómodo [...]”
Quando faltam os recursos, a comunicação assertiva e a confiança, a capacidade de trabalhar de forma colaborativa parece ficar enfraquecida: “[...] onde deveria ter sido um por todos e todos por um, pudemos ver como cruelmente tiraram os fortes o pão da boca aos débeis [...]”
A habitual necessidade de encontrar um culpado parece ser a solução para todos os desafios, mesmo que isso seja apenas uma alegoria: “Este tipo é que é o culpado da nossa infelicidade, tivesse eu olhos e agora mesmo dava cabo dele, vociferou, enquanto apontava na direcção em que julgava estar o outro. O desvio não era grande, mas o dramático gesto resultou cómico porque o dedo espetado, acusador, designava uma inocente mesa-de-cabeceira.”
A justiça e a equidade são ancorados no respeito e na disciplina, e na sua ausência deixamos de conseguir usar de empatia, instalando-se a desconfiança como se houvesse uma projecção nos outros: “A divisão foi mal feita, Será́ sempre mal feita se não houver respeito e disciplina, Se tivéssemos cá alguém que visse ao menos um bocadinho, Ora, arranjaria logo uma estrangeirinha para ficar com a maior parte para ele, já dizia o outro que na terra dos cegos quem tem um olho é rei [...]”
Os sentimentos de culpa que se arrastam no dia-a-dia e de como modelam os comportamentos: “[...] sentiu-se como se estivesse por trás de um microscópio a observar o comportamento de uns seres que não podiam nem sequer suspeitar da sua presença, e isto pareceu-lhe subitamente indigno, obsceno, Não tenho o direito de olhar se os outros não me podem olhar a mim, pensou [...]”
Alguém que vê e crê ter uma solução e/ou apoio nem sempre tem coragem de o assumir pelo receio do que possam os outros pensar: “Que faço eu, se a minha maior preocupação é evitar que alguém se aperceba de que vejo, Alguns irão odiar-te por veres, não creias que a cegueira nos tornou melhores [...]”
Quando se instala a incerteza, revelam-se nas equipas (ou grupos) os diferentes estilos de ser e de estar: “Aproveitando-se do alvoroço, alguns dos cegos tinham-se escapulido com umas quantas caixas, as que conseguiram transportar, maneira evidentemente desleal de prevenir hipotéticas injustiças de distribuição. Os de boa-fé́, que sempre os há́ por mais que se lhes diga, protestaram, indignados, que assim não se podia viver, Se não podemos confiar uns nos outros, aonde é que vamos parar, perguntavam uns, retoricamente, ainda que cheios de razão [...]”
Quando se instala o desconforto, parece que a posse pelos detalhes é um imaginário conforto: “[...] e aí, como barco que em meio do temporal logrou enfim entrar no porto, tomavam posse do seu fundeadouro pessoal, que era a cama, e protestavam que já́ não cabia mais ninguém, que os atrasados fossem procurar noutro sítio.”
Ainda que se negue, reside no processo de autoconhecimento e gestão emocional a âncora que promoverá a identidade lúcida e colaborativa: “[...] levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma [...]”
A metáfora da cegueira, aplicada à vida, às pessoas, à cultura e às Organizações: “[...] olho que está cego transmite a cegueira ao olho que vê [...]”
Este livro transporta-nos para um patamar de chamada de atenção para o que somos e para onde queremos ir; de perceber que o que nos torna seres únicos é a capacidade de humanidade, dotada de emoções, de estabelecer relações sociais com base no respeito e na confiança recíprocos.
É uma obra que aborda a tomada de consciência, essa magnífica capacidade que nos distancia das máquinas e/ou do estado animalesco.
Termino com um paralelismo entre esta obra e as palavras proferidas por António Damásio, a propósito do seu trabalho mais recente, A Estranha Ordem das Coisas: “[...] sem educação, os homens vão matar-se uns aos outros”. Sendo que esta morte pode apenas ser simbólica, no sentido de oprimir, dominar, subjugar.
“Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara.” (José Saramago)
✍ Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico. ✓ Revisão de texto realizada por José Ribeiro