O que podemos reflectir com “A Lagosta”
O filme A Lagosta, de 2015, realizado por Yorgos Lanthimos e escrito por Efthymis Filippou, assume-se, sem qualquer dúvida, num registo distópico – de forma híbrida entre a comédia e o drama – e conduz-nos numa acutilante reflexão sobre os processos de categorização e normalização social.
A história é apresentada em metáfora crua e dura, apenas amenizada por um humor fugaz, que se aproxima da ironia sarcástica, que tão bem poderia caracterizar alguns contextos em que actualmente nos movemos.
Os meios-termos acabaram: a Humanidade passa a viver em formas polarizadas, sem que isso seja, aparentemente, desconfortável. Nesta retratada comunidade, foi instituída uma espécie de ordem social que impede que as pessoas tenham o estatuto de solteiras. Qualquer Ser Humano que viva fora de relacionamento afectivo é imediatamente detido e enclausurado num Hotel, tendo 45 dias para encontrar o seu par. Se, findo este prazo, a tarefa for incumprida, será transformado num animal à sua escolha.
Numa história em que ninguém tem nomes, à excepção do protagonista, David, as pessoas são descritas por traços ou características – o homem com a língua presa, a mulher sem coração... Começam, assim, as categorizações, que tão bem conhecemos, e que são, não raras vezes, estigmatizantes e herméticas. Porquê uma lagosta? Representa o animal que David escolheu para se transformar: “Porque vivem mais de cem anos, têm sangue azul como os aristocratas e são férteis por toda a vida.”
“Aproveite a sua estadia” é uma irónica forma de cortesia para escamotear o que significam 45 dias para levar a cabo o objectivo de encontrar um parceiro, onde as escolhas individuais são ditadas por um registo de adaptação e acomodação com vista à sobrevivência, muitas vezes enformado por uma hipocrisia baseada na mentira, oportunismo e falso bem-estar. A história de David dura mais que 45 dias, e o Hotel será apenas o começo da sua transformação. Após a sua fuga, seguir-se-á a vivência na floresta com uma comunidade também enformada pela normalização e categorização, com uma liderança autoritária e manipuladora, que entre o ser e o parecer em nada são congruentes.
A normalidade da vida parece apenas residir na “cidade”, num nirvana da felicidade, onde as cores e os deleites são existentes. Falácia, mais uma vez. Também aqui o registo de “vigiar e punir”, descrito por Foucault, é a mais pura realidade.
O que podemos reflectir com este bizarro filme, que aborda “um” mundo e suas pessoas, o que são e no que se tornam:
O poder dos rótulos é abordado no filme do início ao fim, o que nos aguça a tomada de consciência da sua existência, de que são aceites e replicados de forma espontânea e quase inquestionável. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
A omnipresença da pressão social do grupo onde as personagens estão inseridas, a (in)consciente tentativa de encaixe nos modelos existentes e as consequências inerentes por cada indivíduo desejar criar o seu próprio caminho. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
A existência de alternativas – que se pretendem diferenciadoras, mas que se plasmam também em fundamentalismos que condenam nos outros – é abordada através do grupo “rebelde”, os Solitários, que opta por não pertencer aos padrões sociais impostos e vive na floresta. O que os torna diferentes? Ironicamente, recusando o padrão imposto, cria, também, um padrão normalizado que impede que haja relações afectivas. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
A inibição ou negação das emoções é uma recorrente estratégia para sobreviver a contextos desconfortáveis em que as personagens se movem. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
A inexistência de meios-termos – ou se é uma coisa ou outra –, como se a polarização fosse a única via aceitável ao equilíbrio da pessoa. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
A competição entre pessoas, metaforicamente abordada nas “caçadas”, é um ritual perverso e maléfico, em que através da captura de “solitários” é dilatado o plafond dos 45 dias estipulados. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
O uso de recursos pouco éticos para a resolução de problemas, alegoricamente abordado através da utilização das crianças para salvar relações que podem estar em risco. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
O recurso à mentira, à residual transparência ou à dissimulação, com personagens que teatralizam para promover a aceitação ou o reconhecimento pelos pares ou pelos outros. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
O despojamento de objectos pessoais e diferenciadores no momento do check-in do Hotel. Todos vestem as mesmas roupas tipificadas. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência. Irónica coincidência quando, na actualidade, se discutem questões identitárias associadas ao vestuário e se pretende normalizar os corpos e vaticinar identidades pelas roupas que vestem. Sem qualquer intenção de calcorrear a análise, recordo a recente questão que se levantou com uma marca de roupa a propósito de uma colecção para crianças. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
Os castigos reais ou simbólicos que se infligem, na tentativa de modelar comportamentos, e como isso tem um efeito perverso no futuro, criando conflitos manifestos ou latentes que condicionam as relações. Qualquer semelhança com a nossa realidade é tudo menos pura coincidência.
É um filme sem fim feliz, nem sequer fim... Termina desconcertante como começa. Mecanizado, à imagem das comunidades que retrata. Sem emoções, sem sentimentos. Só imagem e som, num vazio emocional, sistematizando, como incisivo alerta, tudo o que a História nos deveria ter ensinado a evitar.
Porque as imagens valem mais do que simples palavras, partilho aqui o trailer oficial.
✍ Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico. ✓ Revisão de texto realizada por José Ribeiro