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O que podemos reflectir com a “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar”


A História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar, livro da autoria de Luis Sepúlveda, poderia ser entendido, de uma forma simplista, como uma obra infanto-juvenil que apresenta uma fábula. Porém, é muito mais do que isso. Assume-se como uma incursão profunda pelo universo das relações interpessoais e da dinâmica colaborativa que se pode estabelecer entre realidades diferentes. Foca-se em personagens do mundo animal para identificar interessantes ligações entre o mundo das pessoas e dos seus comportamentos. Personagens protagonizadas por gatos, gaivotas, macacos e outros animais espelham paralelismos com o mundo em que nos movemos. A Humanidade é apresentada de forma subtil como podendo assumir comportamentos que a comprometem a si própria.

A história bela e harmoniosa no espaço geográfico do porto de Hamburgo, introduzindo o voo de um bando de gaivotas conduzidas pelos seus líderes, as “gaivotas-piloto”. Surge o primeiro exemplo de que até os animais, com um objectivo em comum, se agregam em torno de uma liderança que reconhecem e acompanham. No entanto, é uma liderança particular, que arriscaria até a qualificar como libertadora, de tão espontânea e colaborativa.

Em resumo, esta história conta a experiência de Zorbas, um gato, que vive na casa de um humano perto do porto de Hamburgo. Numas férias em que o seu dono se ausenta, Zorbas vê-se confrontado com uma situação imprevista: na varanda da casa aterra a gaivota Kengah, que, tendo sido vítima de uma maré negra, se apresenta num estado muito debilitado. A gaivota, antes de morrer, põe um ovo e força Zorbas a assumir três promessas: não comer o ovo, cuidar da cria e ensiná-la a voar. Zorbas acede sem antecipar a responsabilidade e os desafios do seu compromisso. E começa a aventura...

O que partilha esta história, habitada por animais que falam, e o que podemos extrair em modo de reflexão:

  • A aparente dificuldade que os seres humanos têm em reconhecer a oportunidade da identidade e de quem se expressa de forma diferente dos seus hábitos: “Kengah, uma gaivota de penas cor de prata, gostava especialmente de observar as bandeiras dos barcos, pois sabia que cada uma delas representava uma forma de falar, de dar nome às mesmas coisas com palavras diferentes. – As dificuldades que os humanos têm! Nós, gaivotas, ao menos, grasnamos o mesmo em todo o mundo (...) – Pois é. E o mais notável é que às vezes até conseguem entender-se.”

  • O mito ou a realidade cruzam-se e tornam-se quase em modo híbrido quando, aparentemente, parece que são sempre os outros que decidem o nosso destino: “Tu és ágil e vivaço, e ainda bem, mas tens que ter cuidado com o que fazes e não sair do cesto. Amanhã ou depois vêm os humanos e decidem sobre o teu destino e sobre o dos teus irmãos.”

  • O impacto perverso das categorizações, alicerçadas em preconceitos que descartam a identidade e as expectativas individuais, comparando, separando e alimentando crenças limitadoras: “(...) tu tens de ter cuidado porque há em ti qualquer coisa que te pode tornar infeliz. Filho, se olhares para os teus irmãos verás que todos são cinzentos (...) mas tu nasceste todo preto (...) há humanos que julgam que os gatos pretos dão azar, e por isso, filho, não saias do cesto.”

  • A profusão da palavra “urgente” normalizou-se e rege a vida das comunidades, modelando padrões de comportamento complexos de desmontar: “– Preciso de falar com o Colonello. É urgente. – Urgente! Sempre com urgências de última hora! Vou ver o que posso fazer, mas só porque se trata de uma urgência.”

  • A existência de elementos que são pontos de apoio, mesmo que apenas ouçam e orientem, traz uma simbólica tranquilidade em tempos de dificuldade: “Colonello possuía um curioso talento para aconselhar os que se encontravam em dificuldade e, embora nunca solucionasse qualquer conflito, os seus conselhos pelo menos reconfortavam.”

  • A forma de estar em equipa e de trabalhar em uníssono para o mesmo objetivo, ainda que aparentemente só um elemento esteja em dificuldades, gera melhores resultados e maior segurança em detrimento da competição e da luta pelos egos e protagonismos: “– Vamos todos. Os problemas de um gato do porto são problemas de todos os gatos do porto.”

  • A aceitação de que errar faz parte da natureza dos processos gera atitudes de confiança e promove segurança e autonomia: “– Bem, realmente são seis marcos. Um erro qualquer um tem.”

  • O saber é uma dimensão dinâmica, e nem todas as enciclopédias têm solução para tudo, pois muitas vezes as decisões surgem de novos desafios e aí é a capacidade de análise e a competência dos envolvidos que geram novas formas de ação, que um dia poderão vir a ser inscritas em enciclopédias: “Mas o que a enciclopédia dizia das gaivotas não lhes serviu de grande ajuda (...) e o que encontraram sobre o petróleo também não os levou a saber como ajudar a gaivota.”

  • O reconhecimento e respeito pela identidade, mesmo que as evidências comprovem o contrário, é uma forma nobre, humilde e genuína de estar com o Eu e com o Outro: “Tu és uma gaivota. Nisso o chimpanzé tem razão, mas só nisso. (...) não te contradissemos quando te ouvimos grasnar que és um gato, porque nos lisonjeia que queiras ser como nós, mas és diferente e gostamos que sejas diferente. (...) É muito fácil aceitar e gostar dos que são iguais a nós, mas fazê-lo com alguém diferente é muito difícil, e tu ajudaste-nos a consegui-lo.”

  • O processo de aprendizagem alicerça-se na modéstia e empenho de todas as partes envolvidas, reconhecendo que existem distintos saberes e que é da sua articulação que surgem formas inovadoras e eficazes de estar e ser, que exige treino e persistência, tal como todos os grandes caminhos que se fazem com pequenos e muitos passos: “Antes de começarmos, vamos rever pela última vez os aspectos técnicos.”

  • O insucesso pode fazer parte do processo natural de crescimento e desenvolvimento, e sublimar a sua existência carrega o ser de insegurança e culpa, sendo inegável a importância de elementos que desmontam as crenças limitadoras para reforçar a autoconfiança: “Nunca se voa à primeira tentativa, mas vais conseguir. Prometo-te.”

  • Ponderar e solicitar apoios complementares em projectos que são novos ou desafiadores é um sinal de autenticidade e nunca de fraqueza, que permite ir além do que se perspectiva: “Reconheçamos que somos incapazes de a ensinar a voar e que temos que procurar auxílio para além do mundo dos gatos.”

  • Encontrar as pequenas alegrias simbólicas do quotidiano apoia verdadeiramente na jornada: “Respira. Sente a chuva. É água. Na tua vida terás muitos motivos para ser feliz, um deles chama-se água, outro chama-se vento, outro chama-se sol e chega sempre como recompensa depois da chuva.”

Este livro é, sem dúvida, uma história de vida, uma história sobre várias vidas e como elas se cruzam no tempo e no espaço naturalmente e com um único objectivo: o bem comum. Sem egos e sem protagonismos exacerbados. Com uma humildade e generosidade que nos faz reflectir no propósito de vida e no que move o comportamento. Fala de animais, mas acima de tudo fala da Humanidade, numa reflexão-espelho que não pretende sentenciar, mas apenas alertar.

Ainda que tudo seja mais fácil quando se trabalha em equipa, esta obra aflora uma questão com uma relevância crucial: a motivação e a crença para fazer acontecer têm uma dimensão individual muito significativa: “Só voa quem se atreve a fazê-lo.”

Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico. Revisão de texto realizada por José Ribeiro

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