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O que podemos reflectir com “A invenção da mentira”


Mentira & Verdade

O filme “A invenção da mentira” é um mergulho denso, carregado de um misto de ironia e comédia, no mundo da relação e comunicação interpessoal. Aborda, de forma distópica, um mundo onde apenas a verdade impera e as relações são exclusivamente mapeadas pela verbalização da verdade num formato sem filtro. Todos os pensamentos e emoções são expressos pelos protagonistas com espontaneidade e naturalidade, sem que haja uma aparente repercussão, ao nível do autoconceito e da auto-estima, em quem recebe essas palavras.

Até que um dia a mentira surge, também, naturalmente. Face a uma situação que ameaça a subsistência de Mark Bellison – a personagem central de 40 anos, a quem todos chamam “falhado” –, surge a inócua afirmação que não corresponde à verdade dos factos. E como todos se pautam pela verdade, aquela mentira é assumida como uma verdade. Essa… e todas as outras que se seguem, transformando o comportamento dessa personagem num padrão evolutivo. Da mentira inócua, geram-se depois novas experiências e novas mentiras. E este efeito multiplicador traz estatuto ao protagonista falhado, sem que, porém, lhe proporcione o que imediatamente almeja: o amor da pessoa que deseja.

O filme aborda, simultaneamente, os padrões socialmente instituídos e, neste caso, tacitamente aceites do que é o sucesso. Um padrão de sucesso baseado na beleza exterior, no estatuto socioeconómico, no que os olhos imediatamente percepcionam.

A história desenrola-se numa comunidade que nos é descrita, nos primeiros minutos, como “um mundo onde a raça humana nunca desenvolveu a capacidade para mentir (...) as pessoas têm empregos, casas e famílias, mas todos dizem a verdade absoluta”. A trama desenrola-se num cenário onde “enganar, bajular ou ficção são coisas que não existem; as pessoas dizem exactamente o que pensam, e, às vezes, isso pode ser um pouco cruel, mas não há muito a fazer: é a natureza delas”.

Permanentes interações sem filtros, com palavras objectivas que nos fazem sorrir ou espantar, encontram-se ao longo do filme:

  • “Hoje não vou trabalhar; não, não estou doente, apenas detesto estar aí.”

  • “O seu bebé é tão feio, parece um ratinho.”

  • “Sinto-me envergonhado em trabalhar aqui.”

  • “És um péssimo argumentista a quem foi dado um péssimo século. E és um cabrão!”

  • “Fico na expectativa de nunca mais o ver.”

  • ·“Boa sorte, imbecil!”

A dado momento, no filme, tal como na nossa vida real, parece-nos que as pessoas apreciam “mentiras piedosas” que lhes aliviem o fardo da verdade ou minimizem o seu sofrimento. E uma mentira, em particular, vai gerar um efeito exponencial na comunidade, quando Mark, para serenar a sua mãe, lhe conta que a morte “não é uma eternidade vazia, que vai para o seu lugar favorito no mundo inteiro, onde será jovem novamente, correr, saltar, como antigamente, e dançar”. E esta mentira será o passaporte para a sua ascensão mediática, fama, recursos financeiros e estatuto. Uma personagem central é gerada: O Senhor do Céu, com um poder supremo no destino das pessoas.


O que podemos reflectir com este filme? Na minha perspectiva, não se distancia muito do nosso mundo e da forma como o vivemos. Algumas reflexões, senão a maior parte, poderiam ter paralelismo em cenários e vivências em que verdade e mentira coabitam:

  • A superficialidade do que os olhos enxergam e as ilusões que geram acabam, de certa forma, por criar imagens holográficas que traduzem muito pouco: “Sabes que sou bem-sucedida porque já viste o meu apartamento e as roupas que trago vestidas. E sabes que sou feliz porque estou a sorrir.”

  • A categorização que se gera na observação a olho nu e o seu efeito redutor nas relações interpessoais e que, em certa medida, podem ferir: “Não, não é muito atraente; não, não ganha muito. Mas não faz mal. Parece uma boa pessoa, é divertido. Um pouco gordo. Tem um nariz arrebitado. De cara, parece um sapo.”

  • Os padrões de sucesso, alicerçados no que se tem em detrimento do que se é, moldam as relações e criam as forças atractivas e repulsivas: “Apesar de ter gostado de estar contigo, tendo em conta a tua aparência, situação financeira e posição na vida, não tenho qualquer interesse sentimental por ti. Não estás à minha altura.”

  • A gestão das opiniões e como isso pode influenciar a auto-imagem e a auto-estima: “O Mark é um dos menos bem-sucedidos argumentistas da Lecture Film. Também ouvi dizer que o mais provável é ser despedido hoje.”

  • O preconceito e a crença limitadora face a contextos e circunstâncias da vida: “Lar – um lugar triste para velhos sem esperança.”

  • O impacto do efeito Pigmalião na gestão das expectativas versus resultados: “Também não tenho muitas expectativas para si, mas desejo-lhe sorte.”

  • A liderança com residual preparação pessoal e técnica para o exercício da sua responsabilidade de acção: “Fiquei nervoso por despedi-lo, não lido bem com a confrontação.”

  • A revelação da vocação do manipulador e o efeito que tem na vida dos seus pares, seja a nível pessoal ou organizacional: “Só queria despedir-me e dizer-te que sempre te odiei. Pus algumas pessoas contra ti. Sempre me senti ameaçado por ti, porque há algo em ti que não compreendo e odeio coisas que não compreendo.”

  • A arrogância do saber e do estar na relação de personagens que se consideram superiores aos seus pares: “Mas tu serás sempre um falhado e eu serei sempre mais bem-sucedido do que tu em tudo. É assim que as coisas são.”

  • A comparação com base na mediocridade e inveja alheia: “Cada vez mais percebo que tenho qualificações a mais para esta função e o quão incompetente você é na sua.”

  • O recurso aos feedbacks ofensivos em contexto de trabalho e o impacto que pode gerar: “Os últimos dois guiões que entregou são deprimentes.”

  • A opção em acreditar e deixar na mão do Universo o que compete individualmente, como se tudo fosse gerido por factores externos: “Não nos cabe decidir o que temos na vida. Isso é com o Homem no Céu.”

  • O determinismo bacoco de quem não consegue ver para além do seu ego e que usa palavras para ostracizar os outros: “Falhados são falhados. É a única coisa que serão.”

  • A postura cobiçosa de quem considera que os outros não têm direito a fazer acontecer na sua vida: “Não lido bem com as histórias que mudaram a vida das pessoas.”

Em modo de síntese, pode pensar-se que a verdade é um dos valores importantes na vida das pessoas, comunidades e organizações. Caso houvesse a oportunidade de vivermos num mundo de exclusiva verdade, a nossa relação poderia ser mais transparente, mas ao mesmo tempo acompanhada de um desconforto.

Não, não defendo a mentira. Sim, sou a favor da verdade. E sou, também, a favor de que cabe às pessoas destrinçar quando e onde a deve falar, ponderando o autoconhecimento, autocontrolo e auto-regulação. E perceber que as emoções existem. As do próprio e as do outro. A isso se chama “empatia”. Adicione-se o respeito pela individualidade e a fronteira do bom senso e boa educação, e acredito que, em larga medida, chegaremos a um cenário onde não será preciso “inventar a mentira”.

Porque imagens valem mais do que palavras, partilho aqui o trailer.


Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro

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