O que podemos reflectir com "A Metamorfose"
Franz Kafka é um autor que dispensa grandes apresentações. A sua escrita perdura pelos anos e é impossível ficar-lhe indiferente.
A sua obra “A metamorfose” dispensará, também, uma profunda apresentação para quem a leu. A estranheza que nos possa causar na introdução rapidamente é pulverizada por uma reflexão sobre a vida humana, as relações interpessoais, as normas e expectativas, o mundo do trabalho, entre outras dimensões que podem parecer menos intuitivas.
É a história, aparentemente simples, de Gregor Samsa, um vendedor de rotinas normalizadas, e dir-se-ia impostas, que “certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto”. E, a partir desse cenário, é-nos apresentado o enredo da sua teia familiar, profissional e social.
O livro apresenta-nos uma personagem refém das suas escolhas, que ao longo da história se percebe nem sempre no seu pleno direito de livre-arbítrio. Uma personagem que trabalha, num formato utilitário de ser vivo-objeto, para um sistema opressivo a fim de pagar uma dívida da sua família, débito que parece não ter fim. Nesta história existem patrões que, perante o atraso de um colaborador, enviam a sua casa o chefe do escritório para perceber o que se passou, em modo de “cobrança coerciva”. Logo aqui, imediatamente, soam os ecos do que se possa seguir.
A história também nos apresenta a simbologia da imagem exterior, do que os olhos vêem e valorizam em detrimento da essência que não conseguem absorver. Quando Gregor Samsa, o nosso protagonista, muda o seu exterior, a diferenciação e as clivagens existentes tornam-se ainda mais profundas. Arriscaríamos dizer que perde, até certo ponto, a sua natureza utilitária. No decorrer da história, o autor aborda, de forma dura e crua, o limiar da vida humana, com a referência ao abandono, desamparo e rejeição.
O que podemos reflectir:
O peso das expectativas dos outros pode tornar-se uma pesada herança, passível de limitar as decisões individuais – “Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais, já há muito tempo que me teria despedido; enfrentaria o patrão e dir-lhe-ia tudo o que penso dele.”
Os mitos que se desenham e que modelam os comportamentos e hábitos susceptíveis de criar formas obrigacionais de perfeição e dever – “Ainda que nós, homens de negócio, sejamos com frequência forçados, mal ou bem, como queiram, a colocar as nossas obrigações profissionais bem à frente de qualquer indisposição.”
As formas desadequadas de gerir pessoas em meio organizacional ancoram-se, por vezes, nas práticas de feedback correctivo em público para ampliar os sentimentos de culpa no próprio e nos demais – “E a sua situação não é das mais seguras, longe disso. Inicialmente tencionava dizer-lhe isto pessoalmente, mas, como o senhor me faz perder o meu tempo com essa insignificância, não vejo motivos para que os seus pais não sejam também mantidos ao corrente.”
A cristalização autocentrada na zona de conforto e/ou nas situações presentes é passível de gerar limites no processo de empatia e, simultaneamente, de projetar mais além – “Os pais não se apercebiam tão bem daquela situação: ao longo dos anos tinham adquirido a noção de que, naquele emprego, o futuro de Gregor estava assegurado para sempre, e além disso estavam a tal ponto absorvidos pelos seus problemas momentâneos que tinham perdido qualquer capacidade de encarar o futuro.”
As situações desafiantes podem por vezes interferir no habitual padrão de comportamento e atitude – “Por infelicidade, a fuga do chefe de escritório originou no pai, até então senhor de si, um estado de total confusão.”
Em circunstâncias de mudança, a manutenção de alguns pontos de referência parece tornar-se um mapeamento de estabilidade, mesmo que possam ser simples objectos ou bens – “Era preciso que não levasse nada, tudo devia ficar; os efeitos benéficos desses móveis nos seus lugares eram-lhe indispensáveis.”
Nalguns contextos, parece que o vestuário se agarra à pessoa como se fosse uma segunda pele que dá sentido à sua existência e às funções exercidas, em que o contexto profissional se imiscui no familiar – “Por uma teimosia qualquer, o pai recusava, mesmo em família, deixar o seu uniforme [...] ele ali dormitava, vestido a rigor, como se estivesse sempre pronto a assegurar o seu serviço, e aguardar, mesmo em casa, a voz do seu chefe.”
O exclusivo olhar para a aparência terá um efeito nos sentimentos que nos unem às pessoas que nos são próximas? Na história, a resposta é crua e dura – “Queridos pais [...] isto não pode continuar assim [...] tentámos tudo o que era humanamente possível para tomar conta dele e suportá-lo com paciência, creio que ninguém nos pode censurar do que for (...) devemos tentar desembaraçar-nos dele.”
A terceirização da tomada de decisão e responsabilidade por acções que ninguém quer assumir parece ser, por vezes, uma estratégia de simbólica desculpabilização – “É preciso que ele desapareça, é a única solução [...] mas como é que se pode tratar de Gregor? Se fosse ele já há muito tempo teria compreendido que é evidente que os seres humanos não conseguem viver na companhia de semelhante animal, já teria partido de sua livre vontade.”
Chegar ao final da história traz-nos a surpresa da natureza humana no seu estado mais complexo. Se nas primeiras linhas, Gregor, o vendedor de tecidos, é a personagem central e o alicerce da família, ao longo da trama vai sendo um bode expiatório, para culminar num fardo cujo desaparecimento é visto como um alívio. O distanciamento emocional é tão denso que o passeio em família nas últimas linhas nos faz questionar sobre quem era de facto Gregor na família, qual o seu papel e as relações estabelecidas. No final, é lamentavelmente apenas um insecto, uma praga, cuja eliminação parece ser o caminho para a felicidade familiar nunca antes equacionada.
Se os livros, ainda que num registo de ficção, têm alguma função na nossa vida, que seja a de fazer-nos cogitar na vida e nos processos de distanciamento social e emocional face a seres humanos que pela sua aparência estão menos conectados com os critérios e papel padronizados que o sistema vivencial lhes atribuiu. Gregor não escolheu ser insecto. A única coisa que esperava era ser aceite e continuar a sua vida. Restou-lhe um quarto sujo e refeições diárias. Isso, obviamente, não chega para humanizar.
✍Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.✓ Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro
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