O que podemos reflectir com O Alienista
O livro de Machado de Assis O Alienista é uma animosa abordagem ao mundo das relações humanas e à (in)sanidade que lhes está subjacente. A história traduz a ténue fronteira entre a razão e a loucura acompanhada de uma alusão crítica a quem tem a legitimidade para atestar a passagem dos limites dessa fronteira. No livro, as próprias definições vão oscilando face ao contexto e objectivos, ainda que, aqui e agora, se registe a inicial: “a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia”.
Este livro cruzou-se na minha vida por um feliz acaso. Enquanto percorria as estantes de uma livraria, tenho a certeza de que o livro me chamou e sorriu para mim. Ao título, era impossível de resistir. Após a leitura, chego à conclusão de que os livros não falam, mas comunicam. E, naquele dia, na livraria, houve a empatia que constrói as conexões.
A história desenrola-se na vila de Itaguaí, e o seu protagonista é o Dr. Simão Bacamarte, descrito como “o maior médico do Brasil, de Portugal e das Espanhas”: formou-se em Coimbra e Pádua e regressa ao Brasil aos trinta e quatro anos, casando-se aos quarenta com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, que “reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes”.
O protagonista passa a dedicar-se, a tempo inteiro, ao estudo da mente humana, empreendendo a construção da Casa Verde, espaço onde começa a receber doentes, estudando “profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenómeno e o remédio universal”. A procura foi tanta que foi necessário ampliar o lugar onde eram recebidos todos os tipos de patologias: “eram furiosos, eram mansos, era toda a família dos deserdados do espírito”.
No início, os casos sujeitos a internamento eram de loucura diagnosticada e consentidos pela sociedade. À medida que o tempo passa e que Simão Bacamarte se envolve no seu trabalho, começa a considerar e internar casos de loucura em massa, para pasmo –e alguma revolta –da comunidade; e progressivamente “o terror acentuou-se [...], positivamente o terror, quem podia emigrava”.
Com o passar dos dias, apodera-se da cidade um clima de tensão, com episódios de tumultos e de protagonistas com egos e ambições ocultos. Esta história integra, de forma divertidamente desconstruída, personagens, comportamentos e atitudes que habitam os nossos dias.
O que podemos reflectir:
A abundância de recursos seguida de uma perda abrupta destes parece ser acompanhada de uma triagem natural do networking: “[...] pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas”;
A culpabilização de terceiros pelos infortúnios individuais é uma estratégia recorrente de quem acredita que a sua responsabilidade é nula: “se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele [...] foi a praga daquele maldito”;
A defesa de causas e pessoas que são justas nem sempre é recebida com abertura e, não raras vezes, é penalizada: “ninguém queria acabar de crer que, sem motivo ou inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz”;
A inveja, que gera distância e hipocrisia entre as relações, é, por vezes, ancorada em preconceitos e juízos de valor, como se não fosse lícito a qualquer pessoa ascender ao que deseja: “entre a gente ilustre da povoação havia choro e ranger de dentes quando se pensava, ou se falava, ou se louvava a casa do albardeiro – um simples albardeiro, Deus do Céu [...] os vizinhos, embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto”;
A vida surpreende-nos, por vezes, com personagens que vinculam a sua opinião em função dos contextos e proveitos, aos quais chamaríamos vira-casacas: “para acrescentar ao mal, um dos vereadores, que apoiara o presidente, ouvindo agora a denominação – Bastilha da razão humana – achou-a tão elegante, que mudou de parecer”;
A ambição pelo poder é um domínio que, em casos específicos, gera motivação de ascender sobre os restantes: “foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo [...] chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí”;
A ironia das lideranças que almejam romper com o passado, criticando e rejeitando o histórico, mas que se resumem a copiar o histórico com novas roupagens, iludindo os incautos e distraídos mortais: “como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir [...] e aliás subentende-se que ele lhes mudou os nomes”;
A desordem de contextos é um desafio audaz à manutenção da sanidade, e uma das únicas formas de a preservar é pensar antes de agir e gerir os impulsos: “a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução”;
A natureza humana é pródiga em categorizar, como se isso traduzisse uma regular orientação da vida em comunidade: “os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos, [...] outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros”;
Esta obra presenteia-nos com a ironia antes de precipitar o grand finale: “tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado [...], não havia regra para a completa sanidade mental”. A própria mulher de Simão é internada.
Machado de Assis parece sugerir que a definição de loucura é temporal e circunstancial, tocando o paradoxo de “admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto”.
Encerra-se a história com uma circunstância e uma hipótese:
“Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo.”
“Alguns chegam a conjeturar que nunca houve outro louco além dele, mas esta opinião, fundada em um boato, não tem outra prova senão o boato.”
Nada melhor que terminar citando Adam Phillips, na sua obra Louco para ser normal: “Discussões sobre sanidade e loucura são sempre sobre o que pessoas querem que as pessoas sejam e apreciem”.
Cabe a cada um de nós ajuizar de acordo com o seu bom senso e consciência.
📝 Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico. ✅ Revisão de texto realizada por José Ribeiro
Comments