O que podemos reflectir com "Ulisses"
Ulisses é uma personagem que habita o nosso imaginário – pela sua coragem, argúcia e força –, partilhada pela pena de Homero na magnífica Odisseia. Hoje, trago Ulisses pela mão de Maria Alberta Menéres, escritora e poeta, que nos deixou um relevante legado literário.
O Ulisses de Maria Alberta Menéres integra os livros do Plano Nacional de Leitura, recomendados para o 6º ano. À partida, tudo nos poderia indicar que é uma leitura simples, orientada para as mentes mais pueris. Engano puro! Este livro traz-nos mais do que aparenta; as suas palavras ganham interpretação vivencial.
O livro apresenta-nos, como protagonista, Ulisses, que à partida nos dispensaria apresentações. Ainda assim, acrescenta-se que “era rei, mas não um rei de coroa e manto, muito solene”, de Ítaca, uma ilha grega. Um homem de aventuras e de desafios, “sempre desejoso de correr mundo”. Casado com Penélope, tinha um filho, Telémaco, vivia feliz e “todos o amavam”. A trajectória da sua vida altera-se no momento em que Helena, rainha grega, é raptada e levada para Tróia por Páris, príncipe troiano.
É, sem dúvida, uma história densa, recheada de surpresas, contrariedades e superação. Talvez a mensagem mais significativa se ancore na resiliência, enquanto capacidade de encarar as situações adversas, superar obstáculos, adaptar, reconfigurar e seguir em frente.
O que podemos reflectir:
Parece tão natural (e humano!) que a mensagem seja recriada ao passar de mente em mente e de boca em boca – “Quem conta, é bem certo que acrescenta um ponto. Oh, mas quando eu conto, são tantos os pontos sempre a acrescentar [...].”
Tantas vezes nos assalta uma ambiguidade de não saber exactamente onde queremos estar, como se algo nos faltasse – “[...] quando estava junto da família, na Ítaca linda [...] só pensava em ir ao encontro do desconhecido; mas quando se via em plena aventura, só desejava voltar para casa, para junto dos seus, onde sabia haver serenidade e encanto.”
Nem sempre a imagem que passamos, fruto das expectativas e ampliada pelo contexto, é literalmente aquela que nos identifica no interior – “Ulisses, como bom grego e valente, tinha de ir para a guerra, também, tinha de cercar Tróia. Mas ficou muito aborrecido com tal coisa, porque não gosta nada destas confusões.”
Nem todas as diásporas ou batalhas se sucedem num ápice, e o que julgamos fácil às vezes tem reveses de percurso – “Embarcaram para Tróia pensando alegremente que iam ter uma vitória fácil e em breve regressariam ao lar. Mas quê? Seria uma luta que havia de durar dez anos.”
A vitória nem sempre está nos melhores recursos, mas sim na melhor estratégia – “Então Ulisses, que todos diziam ser o mais manhoso dos homens, pensou, pensou e teve uma ideia: construir um enorme, um gigantesco cavalo de pau [...], os gregos deviam fingir que iam todos embora dali e deixar às portas de Tróia o monumental cavalo sozinho.”
A mestria de navegar, mesmo em sentido figurado, tem a sua arte de reconhecer que, por vezes, o mais seguro é deixar de navegar contra a corrente e aguardar – “[...] se acaso obrigassem o navio a seguir a direcção que pretendiam, este corria o risco de se virar [...] não vale a pena resistirmos agora. Deixemo-nos ir nesta corrente, e quando ela abrandar retomaremos o rumo de Ítaca.”
Existem personagens irascíveis em todas as histórias, daquelas que viram tudo ao contrário e que depois se arrependem, sendo já tarde – “Chamava-se Polifemo e tinha um mau génio horrível. Zangava-se por tudo e por nada, e depois dava muros para a esquerda, murros para a direita [...], depois arrependia-se, mas o mal já estava feito.”
Tal como nas histórias, muitas vezes ouve-se uma directiva/ordem da liderança, e a persistente curiosidade em querer saber mais pode conduzir a situações desafiantes – “[...] o que vai aqui dentro? – não vos posso dizer o que é, mas peço-vos o maior cuidado, senão uma grande desgraça nos acontecerá. [...] os dias sucediam-se e a curiosidade aumentava [...] a curiosidade rebentava por todo o navio. [...] não resistiram mais e... nem vos conto o que então sucedeu.”
Tal como nas histórias, existem “poções”, utilizadas por ardilosas personagens, que têm efeitos estranhos em quem teima em ceder-lhes – “[...] a deusa serviu aquele licor aos marinheiros e no mesmo instante em que o beberam logo esqueceram o seu próprio nome, quem eram, qual a sua pátria, a sua família e o seu papel no mundo.”
O que entregamos pode ser, muitas vezes, o que vamos receber depois. Se é karma ou o que lhe queiramos chamar, é apenas uma escolha de nome – “[...] respondeu que se chamava Tântalo e fora cruel em vida. Sempre negara de comer e beber aos que dele se haviam aproximado com sede e fome, e agora era aquele o seu eterno castigo: cheio de sede, desejar a água sem nunca a poder beber; cheio de fome, desejar os frutos sem nunca os conseguir agarrar.”
A avaliação de uma pessoa pela exclusiva apreciação do que é a sua imagem exterior sabe-se que é espontânea e, também, que cria estereótipos e juízos de valor – “Todos riem, começam a fazer troça do mendigo: – Com este aspecto! O que vens cá tu fazer? Desanda já daqui para fora!”
E não é só nas histórias que personagens “pequeninas”, cheias de si mesmas e vazias de conteúdo, se alimentam de humilhar e escarnecer os seus semelhantes para se sentirem superiores – “O mendigo apareceu no meio destes pretendentes insolentes, e logo eles o insultaram sem razão, apenas porque essa era uma das maneiras que tinham para se divertirem.”
Terminámos a leitura desta breve história com uma tranquila certeza: Ulisses, depois de tantos e tantos anos, regressa a casa de que tantas saudades tinha. De igual forma, percebemos que a perseverança é uma característica que, em certos momentos, é o único nutriente que alenta no caminho. Para Ulisses, o tempo que mediou entre a partida para Tróia e a chegada a Ítaca foi longo e de muitas perdas. Pode dizer-se que foi protegido pela Deusa Atena, mas isso não explica a totalidade da sua persistência e tenacidade.
Em síntese, acredito que este livro amplia que nem todas as aventuras e grandes conquistas passam por um mar agreste ou por histórias de ciclopes, deuses, deusas e outros que tais. Arriscaria dizer que existe um Ulisses em cada um de nós. Sem sermos deuses ou algo semelhante, enfrentamos diariamente os mais variados desafios e somos compelidos a resistir e a prosseguir.
A coragem poderá ser sempre o ingrediente que nos traz à memória que também depende de nós o processo de encarar e agir nos desafios.
Cito Mark Twain para relembrar o que pode ser a definição de coragem: “Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a ausência do medo.”
.✍Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.✓Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro
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