“Recomeça... Se puderes”
“Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade. (...)”
Miguel Torga
Se as palavras comunicam, esse poder está presente em vários formatos. A poesia não é excepção, no seu impacto de nos transportar para um mundo interpretativo das vivências e emoções associadas. Já tive oportunidade de escrever sobre provérbios, livros, filmes. Em 2023, o desafio é olhar a poesia numa tentativa de a relacionar com o quotidiano da existência mundana. Sem querer ferir o interesse ou a intenção de quem a escreveu, é tão-somente o meu mundo interpretativo sobre a mesma.
O poema “Recomeça... Se puderes”, de Miguel Torga, surge como um excelente prelúdio para o “pontapé de saída” de um novo ano que se inicia.
Em muitos contextos, ouvimos ou lemos que, mais do que o ano ser diferente, a transformação reside na pessoa, independentemente da cronologia, do tempo sequencial tal como o perspectivamos. Concordo! O recomeçar não tem necessariamente de estar acorrentado a um tempo específico, cabendo-nos perceber ou simplesmente tomar consciência do tempo oportuno.
Numa sociedade veloz, imediatista, em que o sucesso se mede – por vezes – pela constância ou regularidade crescente dos eventos pessoais, a palavra “recomeçar” nem sempre é vista com isenção de juízo depreciativo. Como se “recomeçar” fosse uma espécie de sinónimo de falha ou insucesso, que nos força a voltar a uma “estaca zero” para retomar o percurso, seja a nível pessoal, familiar, profissional ou organizacional.
O poema assinala “se puderes”, dando a autonomia e a consciência individual necessárias para que seja feita uma análise ao contexto para perceber as condições actuais, analisando riscos e oportunidades de fazer diferente, na cadência de cada um, à sua medida e necessidade, “sem angústia e sem pressa”. As mudanças carecem de tempo e de reflexão, de equilibrar emoções que nos podem turvar a iniciativa, de compreender impactos, de capacitar a acção, de preparar caminhos e novos circuitos.
Recomeçar é, muitas vezes, muito mais do que mudar de espaço, de redes de conexão interpessoal. Recomeçar é um processo que, na minha opinião, requer coragem destemida para arriscar o voo e que se ancora na transformação, aquela força catalisadora que vem de dentro para fora. Mesmo que o espaço e/ou as pessoas sejam as mesmas – sem que haja a mudança em sentido restrito –, nós tornamo-nos diferentes, após um processo interno de alteração dos nossos padrões habituais de pensamento, sentimento e acção. A transformação, na minha mente e emoção, catapulta-nos para recomeços, sem que haja uma perda de identidade: é apenas uma actualização da mesma, com a criação de novos circuitos neuronais e emocionais que nos capacitam para recomeçar. E isso é tudo menos falha, insucesso ou erro.
O poema termina com uma ideia central do processo de recomeçar: a liberdade. Palavra simples, aparentemente um direito ou realidade adquirida. Falácia... A liberdade é dos privilégios mais “caros” do nosso mundo. Em alguns contextos, inacessível e vedada a algumas pessoas no seu sentido mais físico; noutros, influenciada por “meios de aprisionamento” conscientes ou inconscientes, gerados por nós mesmos e/ou por quem nos rodeia e que permitimos e legitimamos.
Quem já esteve aprisionado de alguma forma, relembrará a sensação maravilhosa que nos inunda quando se abre a “porta da masmorra”. Ter liberdade de acção e de pensamento é um privilégio, que nos permite tomar decisões com livre-arbítrio. Essa decisão pode passar por transformar, manter, continuar, persistir, resistir… e também recomeçar, quando, onde e com quem quisermos. Essa é uma das nossas liberdades. Caberá a cada um de nós continuar a recomeçar para manter a liberdade. Sem pressas, sem culpas, sem ter vergonha de assumir.
O juízo de terceiros – que tanto nos aprisiona – irá acontecer de qualquer forma. Essa também é uma liberdade.
Recomecemos, quando for o momento e se for o desejo.
✍ Este artigo foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.
✓ Revisão de texto realizada porJosé Ribeiro
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